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26/04/2017

A Sala do absurdo




Vejo, no cristal escuro de uma vidraça, de forma distorcida, um reflexo, por certo, desiludido. Vejo, no meio de uma aula estéril, na qual o douto quer resolver os problemas dos céticos, alguns olhos interessados e também vejo outros olhos desconcentrados. Vejo alguns olhando, com constante impaciência, o relógio que não os socorre. Talvez eles pensem na vida. Nas coisas do dia-a-dia. Talvez suas roupas estejam em algum varal, talvez seus carros estejam sem alarmes. Talvez os seus cachorros estejam sem ração. Será que seus perfumes estão agradáveis? Será que seus cabelos estão arrumados? Será que as suas unhas estão bem cortadas? Talvez eles pensem, com excesso, na vida. Vejo, no fundo da sala do absurdo, uma das lâmpadas, por ora, apagada. Ouço o som grave de um papel ser amassado. Ouço o som agudo de uma cadeira sendo arrastada. Ainda ouço o sussurro de alguém conversando. Vejo do lado direito da sala, uma trança entranhar um rapaz. Vejo, ainda daquele lado sala, pessoas atentas demais, que talvez escrevam sem ler, assim como, por vezes, eu faço. Vejo do lado esquerdo da sala, um evidente entusiasmo, e também sinto um aroma intelectual. A certeza, por lá, se mantém sentada e a dúvida está mais atrás. Vejo incontáveis rostos felizes e também vejo outros encolhidos, e quem sabe até deprimidos. Vejo, com gigante curiosidade, uma luva de kickboxing no chão, talvez o dono ainda pense que é possível vencer a luta da vida. Vejo, com certa afeição, do outro lado da sala, em cima da uma iluminada mesa, um livro do romancista Cervantes, saboreado até a metade. Vejo tudo isso ao mesmo tempo, sem poder fazer um minucioso exame, e isso me deixa demasiado entristecido. Queria analisar a acomodação dessas coisas e esclarecer os porquês de elas estarem ali. Entretanto, vejo abeirar-se o fim desta aula. Fim que há tanto ansiava.

17/09/2014

Diálogo consigo mesmo sobre o amor IV

Todos os versos 
Inverteram-se 
E o amor não resistiu à mera ventania 
Ele foi esquecido no armário da cozinha
no porão se perdeu
Foi diluído no cotidiano das ausências 
Por isso, digo, com a voz rouca
de quem grita sem expressão,
Amor, não prometo a perfeição
apenas o perfectível



21/08/2014

Diálogo consigo mesmo sobre o amor III

A sua pele
ao tocar a minha
traz uma sintonia 
que a agonia sisifica do dia
me retirou
helena,
tocá-la
me faz lembrar da vida

19/08/2014

Diálogo consigo mesmo sobre o amor II

Não se preocupe. 
Esse vento forte
É um bom sinal
No pico,
o vento é devastador
E seria um erro
crer que ao se elevar
não haveria inveja
daqueles que não sabem voar

18/08/2014

Diálogo consigo mesmo sobre o amor I

Segure firmemente 
a minha mão
E pressinta

Só há uma verdade absoluta:
o amor resiste...
A toda dor de desamor
Venha cá, preciosa,
Dê-me um afago longo
logo tudo isso acabará
Não haverá mais hiato
e nossa vida será una




09/06/2014

Confidência do Maringaense


Alguns anos vivo em Maringá
Principalmente nasci em Maringá
Por isso, sou acomodado, retrógrado de carteirinha
Elitista proprietário, consumista desenfreado
Se tiver alma, por certo, individualista
Mas, sem dúvida, um simpático ruralista 

No entanto, a vontade de mudar o senso comum, vem de Maringá,
De suas ruas seletistas, de suas poderosas famílias,
De suas noites festivas e das silenciosas e sofridas

Esse não se contentar, que me nutre,
Tem origem contraditória em Maringá

Em Maringá, há diversas coisas que você pode comprar:
Um ingresso para o show dos vampiros
Superficialidade de fardo na loja do cínico
O falso suspiro de amor
de quem só pensa no próprio umbigo

Aqui tive dores, tive amores, tive tristeza
Hoje não tenho certeza do que sinto
Maringá permanece indiferente às suas vielas
Mas pressinto cenas belas

Alocução perfunctória sobre a morte I

A impotência está na raiz de todos os medos. Ao tê-la, ficamos numa permanente e desesperada alucinação. É o mal da autoconsciência. Pensamos formas e formas de mudar a realidade. Chega-se a não dormir pensando nisso. No fim, acabamos por aceitá-la. Ou se faz isso, ou não se vive mais. Os mais geniais (?) conseguem esquecer a impotência e vivem como se a nunca tivessem conhecido. Por isso, a morte é por demais temida. A morte é a impotência máxima. Pode ser que a morte não seja temida apenas por isso, mas o é sobretudo por isso.